Desde 2011, o governo vem aumentando o número de setores em que, no
lugar dos 20% da contribuição sobre a folha para o INSS, as empresas
pagam o equivalente a 1% e 2% de seu faturamento. O novo sistema reduz
os custos das empresas contempladas e o Tesouro cobre a diferença. Esse
ano o governo estima que a renúncia fiscal seja de R$ 21,6 bilhões, que
será rateada entre todos os contribuintes da Receita Federal e
beneficiários dos demais programas do governo.
Em todo o mundo, a contribuição para a seguridade social incide sobre
a folha de pagamentos. O vínculo entre a renda do trabalho e as
aposentadorias advém do fato dessas serem calculadas com base nos
salários ao longo da vida e na expectativa de vida. A população
brasileira está envelhecendo e a expectativa de vida aumentando. O
lógico é que a idade de aposentadoria e a alíquota da contribuição sobre
os salários aumentem para mitigar a expansão do déficit do INSS.
Ao transferir o financiamento da seguridade para o faturamento,
tornou-se mais difícil justificar um aumento da idade de aposentadoria
ou da alíquota daqui para frente. Sendo a previdência apenas mais um
item do Orçamento da União, as suas demandas entrarão em conflito com
outras rubricas como gastos com crianças e jovens e saúde, por exemplo. É
muito mais fácil - técnica e politicamente -proteger os demais gastos
se houver um claro vínculo entre folha salarial e gastos da previdência.
Nesse sentido, a desoneração significa um retrocesso nas instituições
fiscais ao se tornar menos nítida a separação entre a Seguridade Social
e o Orçamento da União.
Ao desonerar a folha, o governo teve por objetivo reduzir o custo do
trabalho e aumentar a competitividade das empresas e o emprego. Na
realidade, a redução do custo trabalhista resulta da renúncia fiscal. De
fato, uma pesquisa realizada pela CNI mostra que 87% das empresas
contempladas disseram que houve efetiva redução de contribuição.
Para reduzir o custo do trabalho bastava reduzir a alíquota de
contribuição sobre a folha. A mudança da base de incidência era
inteiramente dispensável. Porém, a mudança da base tem efeitos
colaterais que são mudar os incentivos das empresas na escolha de
tecnologias e setores. Não sei se os formuladores do governo chegaram a
refletir sobre eles.
Quando se muda da folha para o faturamento a base de incidência, não
só a renda do trabalho, mas os demais serviços empregados pela empresa
passam a arcar com o financiamento da seguridade social. A "desoneração"
equivale a tornar a contratação de trabalhadores relativamente mais
barata que outros serviços, como aqueles de um equipamento.
Evidentemente, ao alterar os preços relativos entre trabalho e capital, a
medida produz um incentivo para as empresas reduzirem a razão entre
equipamentos e trabalhadores, o que reduz a produtividade do trabalho.
Nesse sentido, a alteração na base tem o efeito inverso do que se
recomendaria em um país cuja taxa de desemprego está baixa e as
restrições ao crescimento da renda são a falta de investimentos e baixa
produtividade do trabalho. Além disso, o efeito da medida sobre a
competitividade pode ser negativo se a produtividade cair mais que a
folha.
Para ilustrar o argumento, imaginemos dois cursos de informática, com
o mesmo faturamento e o mesmo lucro, em que um emprega apenas
professores para ensinar e o outro emprega menos professores e usa
intensivamente softwares de demonstração. Vem a mudança na base de
incidência, e o primeiro curso passa a ser mais lucrativo que o segundo.
Suponhamos que a tecnologia usada pelo segundo curso é melhor para os
alunos e que, com o tempo ela aumentaria sua parcela de mercado. Com a
mudança da incidência de imposto, essa tendência vai ser mais lenta, ou
até abortada, para prejuízo dos estudantes.
A lei não se aplica a todos os setores. Suponhamos, a título de
exemplo, que a lei altere a incidência da contribuição para o setor de
transportes rodoviários, mas não para serviços hospitalares. Devido à
renúncia, os incentivos para investir em transportes passam a ser
maiores que em hospitais. Mas o que acontece se, dadas as carências da
população, o melhor é que haja mais investimentos em saúde do que em
transportes?
A conclusão é que a desoneração distorce os incentivos das empresas
em relação às tecnologias e aos setores onde investir, diminuindo a
importância de outras políticas públicas, das vantagens competitivas
acumuladas pelas empresas ao longo dos anos e das preferências
individuais e sociais.
O governo anunciou que mais setores serão incluídos no programa.
Sabe-se lá aonde chegará a renúncia fiscal quando todos os setores forem
contemplados. À medida que mais setores sejam incluídos, teremos mais
uma fonte de déficits fiscais já que as renúncias são agora permanentes.
É evidente que, por ser discricionário na escolha dos setores, o
programa incita as empresas a brigar junto ao governo para serem
contempladas. Com isso, os políticos contam com mais um canal para criar
dificuldades para vender facilidades.
É impossível ver alguma vantagem no programa de desoneração da folha.
Ao contrário, há vários aspectos negativos como o incentivo ao emprego
quando o mercado de trabalho está apertado, o desincentivo ao
investimento e ao aumento da produtividade, quando esses são os dois
limitadores do crescimento econômico. Fora efeitos totalmente relevados
pelas autoridades, e que estão na base do desenvolvimento das economias,
quais seja a escolha das empresas entre tecnologias e setores onde
investir.
Enfim, o programa não foi bem desenhado e deve produzir enormes perdas para o desenvolvimento do país.
Fonte: Valor Econômico, por Edward Amadeo, 04.06.2014
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